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MeToo: as 5 lições que aprendi

por amorlíquido, em 22.02.21

Como alguns de vós puderam ler, aqui e aqui também, e porventura se terão apercebido do que se tratava, eu sofri, há muito tempo, uma situação de abuso sexual que abalroou a minha autoestima, muitas das minhas crenças e formas de estar na vida, pelo que, hoje, decidi partilhar convosco as grandes lições que eu aprendi com essa vivência, as quais me acompanham todos os dias. 

 

  1. Não é uma questão de "porquê a mim?", senão de "como é que isto fará de mim alguém melhor?": durante muitos anos deparei-me com a batalha interior de achar que era culpada por não ter sido capaz de impedir que acontecesse, sentindo uma imensa revolta e raiva por quem o fez. Daqui passei para a interrogação que me fez frequentemente duvidar de mim, do meu valor, da razão de aquilo ter ocorrido, até chegar à etapa na qual hoje me encontro - a de usar essa fragilidade e mágoa a favor da minha coragem para aceitar os desafios que a vida me coloca e nunca, mas nunca, desistir. 
  2. Não tomar o todo pelas partes: associado a um autoconceito debilitado, surgiu uma dificuldade em confiar nas pessoas de um modo geral, e em particular no sexo oposto. Foi um processo muito moroso e que muitas vezes me fechou ao mundo, aos sorrisos, à descoberta e ao conhecimento. De mim e de quem me rodeava. Estive muito tempo voltada para a minha vontade de deixar cair os braços, a minha tristeza, a minha derrota, no fundo, para mim. Senti-me uma pessoa profundamente egoísta e foi esse o grande sinal de alerta para procurar a mudança. Não generalizar é fundamental para que saiamos da clausura, fazendo desvanecer os muros que colocámos entre nós e os outros. Dar uma oportunidade, permitir aproximações. Não é fácil, no entanto é possível. 
  3. Aceitar que chorar é legítimo, mas que é na luta que reside a felicidade: libertar o que nos vai dentro da alma é natural e saudável, desde que isso não nos impeça de ver além da vista embaciada. Para mim, foram momentos importantes. Aliás, continuam a ser, seja por este ou outro motivo, encontro-me comigo e sei que dali consigo sair mais forte. Sempre foi assim? Não. Até não há muito tempo, nos altos e baixos que por vezes emergem, sentia uma inércia tremenda para deixar as lágrimas na almofada, levantar-me e usar a esperança como força motriz para continuar caminho. Agora, continuo a permitir-me ir abaixo, mas aprendi a não lá ficar. Por uns instantes tudo bem, mas quando o sal seca, é de pé que tenho de enfrentar as adversidades. Acreditar, acreditar e trabalhar dez vezes mais para sair da espiral onde não existe luz. 
  4. Calçarmos os sapatos dos outros ajuda a estarmos em paz connoscouma das maiores vitórias que tenho tido desde que deixei de olhar de maneira tão autocentrada, é a de vislumbrar o ser humano de outra forma. De o abraçar, de o sentir, de o descobrir de dentro para fora. Aquilo pelo qual passei possibilitou-me uma maior capacidade de compreensão do outro, de entender o que vê, o modo como sente, não segundo os sapatos que levo eu calçados, senão com aqueles que apenas a ele lhe pertencem. O foco transferiu-se e tal foi o propulsor para, eu mesma, conseguir olhar os problemas de outra forma, com outra garra e perseverança.  
  5. Toda a gente merece ser amadadeixei esta para último porque é algo inacabado neste percurso que aqui vos conto. Ser usada/o ou amada/o são coisas muito distintas e caí no erro de pensar, na altura adolescente, que se tinha sido usada, então é porque não merecia o amor de ninguém. Convenci-me de tal forma disso que namorar era algo impensável para mim. Se havia alguém, então seguramente que só me queria para seu proveito, como um meio para atingir o fim. Mantive-me amarrada a isto durante anos, até conseguir aplicar, na prática, o que já sabia na teoria da lição nº 2. Foram passos muito pequeninos, dados muito lentamente, mas que me fizeram chegar ao que antes era inconcebível - eu também mereço ser amada, e não só mereço como é possível que alguém o sinta verdadeiramente! 

 

A resiliência foi uma arma encontrada e o amor-próprio uma construção. Há circunstâncias na vida pelas quais todos passamos e que nos marcam, independentemente da gravidade ou violência que as caraterizam, porém da forma como nos atingem. Não escolhemos o que nos acontece, mas podemos optar pela forma como reagimos depois de acontecer. Demore o tempo que demorar, esse dia chega. O da renovação, da superação, o de guardar as cicatrizes bem guardadas - porque elas fazem parte de nós e do que somos - sem deixar que essa gaveta se abra e as feridas irrompam no direito que temos à felicidade, ao amor, ao respeito. Somos muito mais valiosos do que aquilo que pensamos ser. Não importa o que outros nos dizem ou o que os espelhos nos contam. Somos nós e cabe-nos a nós sermos mais do que a dor que nos descobriu. 

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Um professor de quatro estações

por amorlíquido, em 11.01.21

Quando soava a campainha, ali estava ele na sala à nossa espera. Caminhava de um lado para o outro próximo ao quadro de giz já muito usado. Em cima da mesa uma pasta castanha envelhecida e, no rosto, uns óculos fundo de garrafa que escondiam rugas tão profundas quanto a exigência que eu já adivinhara. Um semblante pouco caloroso e que me fez estremecer antes mesmo de me sentar.

Nas aulas levava os exercícios mais complexos e desconfio que nunca soube como nenhum de nós se chamava. O tempo cronometrado, parcas palavras numa explicação que era o mais concisa possível, sem espaço a muitas interrogações. "Desenvencilhem-se!", dizia ele, lembro-me tão bem. Mas, hoje, é dele que mais me recordo. Por nos ter mostrado como é possível chegar ao destino sem ser por linha reta, assim como a distância em nada é proporcional à ausência, desde que jamais falte vontade. 

Ensinou-nos que os números têm um significado maior que os seus algarismos e que as palavras unem continentes tão depressa como provocam tempestades. Agora sei que por detrás do coração que julguei ser frio, o "acredito em ti" esteve sempre lá. Até eu acreditar. Tal como o João que costumava ficar de castigo todas as aulas, ou a Mariana que fazia questão de se sentar na primeira fila. Hoje, como todos eles, também o Simão sabe que é capaz. E a Leonor, a Inês ou o Francisco.

Todos crescemos à força e aprendemos que não são as palmadas nas costas que nos marcam verdadeiramente, senão quem nos diga que os caminhos serão encruzilhados porque as facilidades não se deparam com os mais fortes. 

Hoje, apesar da sua exigência e pouca empatia, só aquela turma sabe como dois mil e vinte vai deixar saudade. 

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