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Palavras. Pensamentos. Desabafos. Em prosa ou em poesia. Com a voz de um amor que se tornou líquido.
A lua, já altiva, marcava as vinte horas daquela quarta-feira fria e repleta de neve.
No segundo andar, no primeiro quarto à esquerda do corredor mais comprido da casa, ali estava ela, sentada sobre a cama, penteando os caracóis que a humidade havia devolvido aos seus cabelos.
- Por que razão choras? perguntou ela ao espelho onde se tentava ver com alguma nitidez.
- Porque te sinto triste. Sei que o estás e, quando assim é, fico triste também. Como detesto quando o meu corpo perde a transparência das verdades.
- Que verdades? interrogou-o.
- As de quem me olha. As tuas. As de quem parar diante de mim.
- E o que te dizem essas verdades? questionou-se.
- Que as pessoas pouco se gostam. Olham-se, mas não se vêem a elas próprias. Entendem-se de jeito embaciado, e quando é pelas ruas que passeiam, mentem a meio mundo porque não se conhecem no seu mundo inteiro.
- Mas eu conheço-me e gosto muito de mim, insistiu ela.
- Gostas mesmo? Ou gostas da versão que crias para outros gostarem de ti? Esse rapaz por quem te escapas pela janela quando o sol se despede, matreiro ao longe, gostas dele?
- Gosto, respondeu.
- E ele gosta de ti?
- Sim.
- Não. A resposta é não. Já viste a forma como ele te trata? Só te procura quando se sente só. Só te deseja quando mais ninguém o quer. Tantas vezes que vos vi neste quarto, alheios de tudo o resto, mas sem presentes estarem. Cada um no seu telemóvel, nas suas vidas, nos seus círculos. Amar é desligar o tempo e as horas que não queremos que passem. Amar é olho no olho até ao esgar do sorriso mais cúmplice.
- Eu sinto que ele gosta de mim, devolveu ela.
- Tu queres acreditar que ele gosta de ti. E isso é totalmente diferente. Queres que ele complete o vazio, a insegurança, a dificuldade de aceitação.
(A sua expressão do rosto aquiesceu)
- O amor não tem segredos, mas aventura. Tem asas e não costas voltadas. E mais importante que esse amor que há de chegar, estou certo, está o amor que sentes por ti.
- Eu tenho esse amor, disse ela em tom baixinho.
- Não tens. Enquanto não conseguires ver todos os teus contornos em mim, não terás. Enquanto sentires dúvidas do que mereces, o teu rosto continuará difuso. Continuarás chorando, e o meu corpo seguirá sendo o depois da tua chuva. Vamos fazer um exercício, hoje vais dormir sobre o assunto e amanhã de manhã, quando despertares, vais ler-me 3 coisas que gostas em ti e 3 que não gostas. E depois de amanhã, 4 coisas que gostas e 4 que não. E depois 5, 6, 7... até não saberes mais o que escrever em cada um.
- Está bem, consentiu. E quando não tiver mais nada para escrever?
- A neve derreterá, os teus cachos voltarão a brilhar sob o calor da estação seguinte.
- E tu? acrescentou.
- Eu voltarei a ser tu. Voltarei a ser verdade. Sem humidade, mas com humildade. E o que a incerteza turvou e a mentira alastrou, a primavera fará desvanecer.
(Descalçando as pantufas quentinhas, ela preparava-se para se deitar, quando...)
- Espera. Não apagues a luz.
- O que foi?
- Quando a lua for embora de sussurro, cala esse amor já cego, surdo e mudo, e constrói-te como abrigo. Que não há amores pôr-do-sol para quem vai amando que nem mendigo.
(Os olhos fecharam e na esperança adormeceu)
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