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A carta que nunca cheguei a escrever

por amorlíquido, em 30.03.20

Querida Vida, 

Escrevo-te estas palavras com receio de que não as compreendas, de que me julgues de um egoísmo do qual achava, eu, não ser capaz. Mas não as posso mais guardar só para mim. Sinto que corro numa estrada com final, não aquele que nos surge pelo caminho, às vezes inesperado e demasiado precoce, senão num percurso onde o confronto com a realidade faz com que a certeza me falhe, mesmo debaixo dos meus pés. E quanto mais são os passos que ao mundo ofereço, mais o destino me parece inevitável. 

Acredita, Vida. No início, quando aprendi a soletrar, talvez quisesse sentir que a minha escrita não era mais que uma alucinação. Resisti ao impulso quase certo de magoar a minha pele, de tatuar o que sempre me protegeu na expectativa, talvez ingénua, de pensar que a leveza do depois me traria o sorriso do começo e que, a partir daí, nada mais faltasse para me saber de mim. E para mim. 
Foram inúmeras as vezes em que o meu corpo se curvou perante o abismo, num sem saber o porquê de tal ângulo iludido pelo que os créditos desse filme haveriam de trazer. 

Eu sei, Vida. Mas já esperei demais. Quis muito que fosse diferente, desejei tanto girar no mesmo sentido que o resto do mundo sem sentir a brisa de todos os que corriam em direção contrária. Tentei olhar-me no reflexo da essência sem que as lágrimas me fugissem. Mais que tudo, procurei as repostas de tamanha indiferença, de ódio injustificado, de ansiedades alheias. Nunca as encontrei, mas na pesquisa ávida de uma saída, apercebi-me de duas coisas: que o amor dos outros nem sempre é incondicional, mas que aquele que sentes por ti dá-te as balas e o escudo que muito precisas. Da primeira retirei a coragem da diferença. Da segunda a valentia da espera pelo que não sabemos sequer se vem. 

Não sei o dia de amanhã. Cada dia é a renovação de uma mesma incógnita. Tenho orgulho na minha força em todos os recuos que me obriguei a fazer, mesmo quando a solução parecia ser uma só. Sei que já senti a espuma das ondas humedecer as feridas, num limite quase sobreposto entre o vai e vem do que fica e o querer do que está exausto de se manter. Atrasei a fusão e hoje cheiro, de longe, a maresia, embora a sinta encaracolar-me os cantos dos lábios. 

Talvez, Vida. Talvez mergulhe num rompante de insuficiência. Talvez aprenda a ler de trás para a frente. Talvez me inunde na escassez ou conheça o equilíbrio da demasia. Sem arrogância de ser, sem vergonha de não ter. Sei que em todos os instantes, foi a firmeza do teu abraço que me atirou a favor do retrocesso. Bolas, obrigada! Farei mais falta em ti do que no teu adversário, quem sabe. Amei-te sempre em todos os segundos do que me fui. E essa foi a minha única bala. 

M. precipicio.jpg

 

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