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Palavras. Pensamentos. Desabafos. Em prosa ou em poesia. Com a voz de um amor que se tornou líquido.
Quando o silêncio da noite cai e o vento sopra baixinho, escutam-se os arranhões do vinil empoeirado, entre o pranto do contrabaixo e o fado do violino, num concerto em desconserto onde os corpos se consomem pela harmonia.
(Lisboa, 6 de Fevereiro de 2019)
Foi na sua primeira década que o mundo ganhou textura num retrato a sépia. A ingenuidade ressoou em todos os recantos e apenas as lágrimas souberam cair. A voz que todos os dias cantava permaneceu em silêncio, tal como o corpo que horas antes brincava de um lado para o outro sem conter a energia que se avolumava debaixo da pele. Um momento que entorpeceu todos os gestos, sem que a consciência do mundo lhe permitisse alcançar a compreensão. Somente a dor e o vazio gritavam por dentro, sem lugar para a culpa ou a revolta. Naquele dia, há vinte anos, tudo mudou. Um todo coeso que se estilhaçou em pedaços incontáveis, muitos dos quais ainda hoje continuam por agrupar. Há vinte anos que a ferida daquela noite se arrasta na visita pela vida, numa desconexão entre o que o corpo deseja e o que a mente, envergonhada, não permite.
Hoje, permanece em falta a transparência das mãos que se abraçam. Não se conhece o cheiro da outra pele, a verdade no olhar, a magia de não querer nunca adormecer. As lágrimas entram sorrateiramente pela janela de quando em vez, como o vazio se disfarça com sonhos demasiado distantes. E a dor? Ai a dor perdeu-se na viagem até aqui! Conhecem-se a impotência na revolta assim como a indiferença no sentido de culpa. Não lhe importa o porquê de lhe ter acontecido, senão o como vai prosseguir apesar do que aconteceu. Há dias em que aqueles abraços ganham cor nos sorrisos que se imaginam ser cúmplices. Algum dia haverão de o ser. Pelo peso daquela lua, pelo saber que a felicidade há-de lhe pertencer. Algum dia. Porque naquele dia a praia esqueceu os castelos de areia num mar que, durante horas, gritou em desespero. Algum dia. E nesse dia, na calmaria do que passou, a alegria da aceitação e da espera trará o marasmo ao oceano e as marés mudarão no interior de si.
(Fotografia: Marco De Waal)
No profundo de quem se permite ser verdade,
há mais luz do que naqueles que morrendo se afogam à superfície.
Se fores um jardim de outono, eu serei a última pétala
se fores o coração, eu serei a seiva de cor inflamada
e se for a vermelhidão do amor, tu saberás como amar.
Se fores os olhos, eu serei as rugas que rasgam no teu sorriso
e se fores sorriso, eu serei os teus lábios.
Se for os teus lábios, tu serás o desejo
se fores o desejo, eu serei pão torrado
e tu a manteiga a derreter.
Se fores o vento, eu serei os teus pulmões
como tu a fúria das marés
e se fores maré, eu serei o sal do oceano
se for oceano, tu serás a areia húmida
que entranha o frio nos meus pés.
Se fores corpo, eu serei o teu tempo
e nesse tempo não saberei como parar.
Se fores lágrimas, eu serei o teu rosto
se fores um livro, eu serei o aroma das páginas por ler.
Se fores poesia, eu serei cada estrofe
se fores pintura, eu serei uma tela em branco
se estiver por colorir, tu serás artista
e se fores a arte, serei a lucidez de não adoecer.
Se fores a lua quente de verão, eu serei sol de inverno
se for inverno, tu serás a chama da lareira acesa
e se fores fogo, eu serei as cinzas do dia seguinte.
Se for noite, tu serás um copo de vinho
e se fores frutado, perder-me-ei na canção de fundo.
Se fores música, eu serei Chopin em apogeu
mas se fores o orgasmo de um piano, então serei as quatro estações.
Se fores o silêncio, eu serei segredo
e se for segredo, ficarei debaixo da tua pele
se fores pele desnuda, eu serei o toque
o beijo
e o abraço
se for abraço, tu serás verdade
e se for de verdade, faremos amor com todos os sentidos
porque se for sentido, tu serás vida
e eu a vontade de viver.
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