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Palavras. Pensamentos. Desabafos. Em prosa ou em poesia. Com a voz de um amor que se tornou líquido.
Em janeiro caía a pedra
cinzenta e perdida
naquela rua esquecida
entre chão outonal de fevereiro.
Folha a folha, um livro colhi
na imensidão das palavras que o solo trazia
todas elas fui escrever
para mais tarde nascer
o março no meu jardim.
Ó caríssimo amigo que já espreitavas
pelas manhãs ingénuas de charme hostil
foste tu meu companheiro
das noites a corpo inteiro
que roubava o sol de inverno
o cheiro e calor terno
amor disfarçado de abril.
Pestanejei e não ver voltei
a não ser o novo maio
que é quente e tão solteiro
brincando com o meu lamento
pedi somente ao vento
que o guardasse longe de mim.
Junho e Julho são momentos de paixão
os corpos nus sob a verdade da lua
as roupas despidas no cachecol da vida
que tropeça e arremesa
porque quando a saudade é pressa
arderá em febre o coração.
Louco agosto que desgosto
essa mania de atenção
é o suor que pinga do rosto
como um dilúvio de sofrimento
mais que o corpo em esgotamento,
sente-se a alma em aflição.
Mas que rapidez, já cá estamos!
No mês de todos os regressos
onde nos olhares ficou impresso
os lugares aos quais não voltamos
em setembro recordamos
o sabor dos mil excessos.
Entre ténues gotas da chuva
e as de desgosto seu,
lá em outubro a água perdia o rumo
e o amor que nasceu no mar
neste mês faleceu.
Ora novembro que se aproxima
com dezembro pelo canto do olho
voltam os dedos frios
embrulhando olhos em rio
pelo verão que já passou.
No paredão vejo o degelo
que a lareira há de trazer
depois de janeiro ter deixado
fevereiro feliz e enamorado
outros dez irão conhecer
as mãos que roubam ideias
ao céu, às flores alheias
quer faça chuva ou tudo seque
juventude verde leque
nesta nossa pele deixar-se-á adoecer.
Ser criativo é
dar vida aos personagens que nos pertencem
recriar cenários onde não nos pudemos demorar
e abandonar o que do mundo não quisemos perder.
É deixar que a chama inflame com as lágrimas de quem batalha
e fazer vibrar as cordas da viola
quando o mundo nosso reclama silêncio.
É encontrar melodia em dias cinzentos
e deles fazer ritmo para uma história contar.
Ser criativo é escrever com o corpo todo
deixar cada pedaço nas linhas desenhadas,
é aprender a ser desfeito em verdades perdidas,
respirar entre pausas consentidas
e guardar derrotas jamais contadas.
Caminhar porque o tempo tem pressa demais
olhar o outro sabendo que a fusão é ingenuidade
e que a distinção é a mais pura das verdades.
Criar prosas em verso é coragem
e o desespero da conquista é rimar
quando a orquestra inteira desafina por dentro.
Porque ser criativo é o tempo não parar
e não nos sentarmos num espaço que é curto até morrer.
Carmen. Do latim “poema” num conjunto de estrofes sem rosto nem idade. Versos cujas palavras se alongam na definição de um corpo apenas, sem que haja insuficiência nesse ser só. Apoiado numa das arestas que abre espaço à realidade, entre os vértices de um recorte quadrilátero onde os sentidos da pertença se confundem.
Será a projeção observada propriedade do que os olhos captam? Ou o vislumbrado terá a forma interpretada por cada diferente olhar?
Entre a vírgula que acolhe a pausa da reflexão ela mantém-se presente, debruçada sobre a fronteira entre o conforto e o desconhecido. Atrás, nada há senão um vulto de incompletude, em si e de tudo quanto absorve do mundo numa euforia que, todavia, não satisfaz a sede que possui de existir. Como um soldado sem armas, numa batalha onde o sangue transparece em lágrimas desprotegidas, suspensas entre a ânsia iluminada de um amor não guerreado e o medo do precipício, em que a firmeza das pétalas apaixonadas cede ao peso da impossibilidade.
Sente mais do que aquilo que é e é no sentir que a essência se espelha a tudo quanto permanece incógnito, na ignorância fingida de que o mundo, tal como Carmen, ainda persiste. Ninguém sabe bem em que local geográfico, a não ser como o lugar presente reluz nas cores do que é instinto, tingindo de branco e negro o que oscila entre o amor líquido e o sofrimento.
Ao centro, a atravessar o cruzamento do que a vista alcança, estão a Anna e o Phillipe com a filha Luz, de sete meses, deitada no carrinho que a mãe empurra delicada e cautelosamente com as mãos. Acabaram de se mudar para a baixa da cidade porque Anna está grávida dos gémeos Henri e Matheo, tendo o casal decidido comprar um apartamento mais espaçoso e confortável para a família que vai crescer. Falam dos discos de vinil que Phillipe viu à venda numa feira de antiguidades perto do bairro onde agora vivem, a pouco mais de dois quarteirões de distância.
O seu olhar desvia-se por breves instantes para o grupo divertido de jovens que está a caminho do bar Ilusion, no outro lado da rua, depois de uma tarde de compras nas Galerias Regina.
Conversam entre todos a que horas se vão despedir do Peter que está de partida para o Vietnam durante dez meses. Sabem que o trânsito depois das 17h é inevitável e prometeram não se atrasar para o jantar em casa de Celeste, uma amiga de liceu que vai estudar para Bolonha no próximo semestre.
Ligeiramente abaixo da rua principal, o sinal dos peões acende a luz verde e, entre uma dezena de pessoas que atravessam a passadeira, encontra-se Oliver. Um cavalheiro de setenta e quatro anos bem vividos, transeunte na calçada, com a sua bolsa de pele pelo ombro e, no pulso direito, o relógio que herdara do seu avô Ivan. Fita-o constantemente e com alguma ansiedade na incerteza preocupante de chegar a tempo à escola da neta, Alice. À sua direita está um casal do Quénia, o Simba e a Núbia. Há 2 meses descobriram que o filho mais novo, Arthur, era homossexual. Desde então, a família coesa de outrora desmoronou na rejeição, na qual o silêncio invadiu todos os momentos partilhados.
Ao fundo, a cruzar a esquina, Cindy aperta o travão e abranda suavemente para passar entre as sombras com que se vai deparando. Na sua bicicleta de cor verde tropa, vem preocupada da clínica onde fez uns exames recentes e cujo resultado tem receio de saber pelo histórico familiar pesado de doentes cancerígenos, cujos desfechos foram quase sempre fatais.
Respiro-me. Profunda e lentamente. Pela esperança imatura de que esse abraço sincero com o espaço que ocupo seja suficiente para preencher o vazio. Aquele de onde inalo uma porção do mundo e para onde expiro a maior parte de mim.
Os quatro cantos do mundo na paralisia de um gesto curioso. Horas antes o cenário era diferente e minutos depois, as penumbras de proximidade inegável davam espaço a que o desenho das silhuetas se tornasse cada vez mais distante.
Naquela petrificação do tempo, na instância de uma qualquer figura geométrica, ali ficaram. Porém, ninguém sabe o porquê. Num movimento fluido cuja continuidade dispersa solidificou, entre o que ontem era a reflexão de um destino e hoje a vivência presente de cada viagem.
Estas são as palavras que correm, sem rumo, sob a forma de um mar salgado, e é nos limites escassos dessa transpiração que a pele se encolhe no tanto que suporta dentro de si. Num ser que se é sobretudo, sobre tudo, cujos contornos se fundem noutros “estar” significantes, em enlaces de ironia questionável.
Serei apenas eu? Existirei além de mim? Na geografia compacta do que sou, quantos indivíduos viverão além da pessoa onde me reconheço habitar?
Mas, naquela oferta espontânea de um relógio ausente, as raízes do que em mim conheço cumprimentaram-se entre palavras não ditas e pousaram como um pássaro numa flor.
Cada matéria orgânica contava uma história em episódios reais e, em desabafos com o que nada detém, a resposta devolvia-se na fusão entre a maresia e o dilúvio pelo que julgara não ter.
Terei vivido enquanto “eu” presente ou conhecer-me-ei nas inúmeras ramificações que abandonam este corpo? Cansado. De ser um peso. De se achar pesado. Desesperado, porque já outrora adoeceu. Haverá redundância em pensarmos se somos algo? Poderemos, nós, refletir a existência quando o volume da consciência alicerça na superfície da substância a que pertencemos?
Seremos donos do tempo? Seremos uma parte dessa imaterialidade? Ou o tempo será a nossa essência?
Enquanto representação do pináculo do não corpóreo, sem cheiro, sem sabor, sem margens tocáveis, onde mais que o desejo de controlar está o receio do descontrolo. Mais que a vontade de o conhecer repetidamente está o medo de não o viver na sua finitude.
Seremos realmente donos do tempo? Como ter a posse do não visível se não detemos tudo quanto fomos construindo em nós?
Cada ser é e é de si, sendo com o que não aceita e com o que o caminho escolheu trazer para ficar.
A doença sem cura, a empresa sem lucro, a criança sem afeto, a mulher sem esperança. Como os que naquelas exatas coordenadas se sentaram e de onde outros voarão para mais longe.
Um diálogo pouco mais que mudo, onde as colcheias desse sonho nunca chegaram a conversar. É nessa urgência que assistimos de camarote à metamorfose do poema, no qual as curvas do que se soletra nascem aquando do socorro. Não porque saibamos que ele vá chegar, mas porque o grito torna pálido o que pintou a alma de negro. A dor abraça sem que com ela queiramos qualquer convívio, e quando recuar não podemos, tornamo-nos balanças que pendem, do saber ingénuo da eternidade à revolta com o confronto da inexperiência.
Se dominasse a filosofia da alma, quanta corporalização seria capaz de conferir aos desenhos da imaginação? Como da combustão sem oxigénio, em repouso dar-lhes-ia forma na arquitetura da mente. Uma reação quase praticável na química leiga que tanto domino.
Um solilóquio. Tão antigo quanto autêntico. Num teatro sem palco nem pano. Onde o ator outro não lá está. Permanece em suspenso um alguém que é somente companhia de si, Carmen, vivendo imersa na introspeção abundante da espera. Um aguardar solitário, não por quem, no sorriso, lhe devolva amor sentido, senão pelo despertar da parte sua que lhe roubou o desassombro da diferença.
Num pranto que envergonha o maior dos cataclismos, Carmen vê-se anoitecer, abandonando a perpendicularidade que permitia a escuridão das margens palpáveis. Agora, no fundo negro, com um foco de luz no círculo do espaço que ocupa, é na desidratação da existência que o vazio se aclara e o medo do que fora noite mata a sede da constante interrogação.
Um dia, quando o contraste reaparecer na continuidade do que separa estes átomos, a doença vira vitória, da falência nasce a ideia, a necessidade faz-se generosidade e a tristeza converte-se somente em fé.
Nesse instante, a simplicidade do impulso de coragem em ser intruso do que é alheio torna-se irreversível e cada sombra do que existe em si dança para um “algures” maior.
Se assim não for, que a vida me faça cega. Ao que sou e ao que não soube amar em mim. Levem-me tudo menos o toque. Que a minha sorte é sentir-me e saber onde deixo de existir.
Lá fora, o mundo caminhava sozinho. Desfeito e imperfeito em dias que se repetiam sucessivamente. A lua tornou-se protagonista de um ciclo no qual o sol adoeceu. Faltavam sessenta pequenos instantes para que aquele relógio de parede no fundo da sala fizesse soar as vinte e uma badaladas. Sabia que mais tarde ou mais cedo irias entrar pela porta e estava incapaz de conter a ânsia que tinha de te ver. Sentia-nos distantes. O cheiro da tua pele ainda abraçava o meu sangue, mas faltava o toque. Já havia esquecido o encontro das nossas mãos, o teu sorriso tão expressivo, o calor da tua respiração.
Hoje, tal como ontem e amanhã seguramente, aqui estou eu, sentada à espera do teu regresso sem nunca te ter visto chegar. Porque davas mais que o corpo à tua maior paixão. Porque apesar das vidas que se perderam, nunca desististe de voltar a salvar. Porque nas trincheiras o tempo passa sem passar, em horas que ultrapassam um dia inteiro. Entre os gritos de aflição porque as feridas chegaram à essência. Entre dores que não contêm oceanos de lágrimas. Entre a vida e a morte, o presente e o futuro, o vencer e o aprender. Entre o lutar e o deixar-se perder.
Aquela noite seria uma viagem com a solidão. O coração em aperto por ti e pelas derrotas que tiveste de enfrentar, sem saber quando ou como voltarias para ao pé de mim. A última vez que nos vimos, faz alguns meses, foi difícil. Muitas palavras ficaram por dizer numa certeza de que no dia seguinte estaríamos juntos novamente. E depois também. Faltou aquele "amo-te" que o olhar soletra gritando por dentro. Faltou o "aconteça o que acontecer, vivê-lo-emos juntos", sem pensar alguma vez que o pior pudesse suceder ou, como agora, sem perspetivas de quando poderá terminar.
Mas o melhor (dentro do pior) é que aqueles abraços sinceros hão de ser nossos outra vez, e que apesar da ausência sabemos ambos que nos temos um ao outro. Aconteça o que acontecer, somos todas as promessas cumpridas, as caminhadas feitas e os lugares ainda por conhecer. Sabemos que o futuro está guardado para quando o melhor momento vier e que a Camila ou o Gonçalo chegarão quando o mundo conseguir cicatrizar. Sejamos três ou quatro, ou cinco como já tantas vezes desejámos, existem dois que vão sempre lá estar. Pontes que apenas unem e pilares que lutarão para o todo permanecer intacto. Confiamos um no outro, não é?
A vida tirou o tapete, a nós e a tantos outros, mas lembra-te daquilo que sempre dissemos: "O que é leve a gente leva. O que custa a gente faz. Se dói a vida releva. Se é o nosso, o tempo traz." Amor coragem, amor esperança, amor vontade. Não desistas. Quando chegares, a humanidade não estará na mesma, mas aqui tudo o que construímos manter-se-á igual. Só te peço uma coisa, quando a areia molhada decidir secar e as nuvens começarem a desafazer-se, leva-nos para o outro lado do mundo que nós somos o sol e aqui todo o dia continuará a ser de noite.
Amo-te
A dor interior confunde-nos. Faz-nos gritar com o que somos simplesmente por o sermos,
mas torna-nos mudos para com quem vive fora de nós.
Amor Líquido
(Parque D. Carlos I, Caldas da Rainha, 2018)
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